domingo, 29 de outubro de 2017

"Eu sou mais feliz que você!"

É curioso perceber como a felicidade é sempre um elemento importante, como recurso argumentativo, para pessoas com pouco interesse no conhecimento.
Todos que, de alguma forma, como eu, são sensíveis àquilo que é negativo no mundo, são considerados mau-humorados e fracassados. Como se o mundo se resumisse a tentativas seguidas que só resultassem em vitórias e sucesso. Estamos presos numa cadeia de acontecimentos que são pré-requisitos para sermos considerados dignos e admiráveis. Crescer, namorar, ser trabalhador, formar-se em um curso socialmente valorizado, ser bem-remunerado, casar, ter filhos, ser amável, ser bem-quisto, ser feliz etc.

Embora raramente alguém consiga atingir esse combo maravilhoso das virtudes, devo admitir que grande parte da população brasileira alcança a maior parte desses objetivos. No entanto, também sou capaz de observar que essa espécie de "jornada do herói" é cumprida, muitas vezes, mais por uma exigência social do que por uma vontade individual. E pessoas como eu - que não almejam tanto essa "normalidade" - sempre acabam caindo em debates extremamente "baixos", onde somos cobrados por sermos infelizes, baseado nos padrões sociais asseguradores da felicidade.

O solitário nunca está certo, pois é exatamente sua solidão que prova seu erro. Também não está certo quem é fora de qualquer padrão estético, pois é o "ser feio" que desqualifica qualquer tipo de reclamação vinda desse sujeito. O mesmo acontece com a felicidade. Só tem razão aquele que é feliz.
Mas o que é a felicidade?

Recentemente, passei por mais uma daquelas situações em que fui apontado como infeliz por estar reclamando de um excesso de fogos de artifício que estavam sendo disparados na direção da casa dos meus pais. Minha preocupação era porque as duas gatinhas que temos estavam muito assustadas com o excesso dos fogos, escondendo-se debaixo de camas com os olhos arregalados. Isso já se estendia por 2 ou 3 dias. 

Não vou mentir: eu abomino, de qualquer forma, o hábito de soltar fogos. Mesmo se não houvesse a questão dos animais, que é uma preocupação bem mais recente que envolve a queima de fogos, eu provavelmente estaria incomodado. Penso que alguns hábitos simplesmente não são compatíveis com o mundo moderno e informado em que vivemos, assemelhando-se, a meu ver, a celebrações tribais. Tenho consciência de que é exatamente o aspecto antiquado que atrai e incentiva a manutenção desses hábitos, já que eles são uma espécie de memória cultural que não se limitou a um relato histórico, mas, pelo contrário, permanece vivo e sendo executado em plena "pós-modernidade". Daí comparo os foguetes a uma celebração tribal, pois, assim como temos, ainda hoje, a possibilidade de olhar para culturas como as indígenas, que nos ensinam a respeito de outras possibilidades de organizações comunitárias, podemos pensar em hábitos como queima de fogos como um registro vivo de outra forma possível de manifestação de um grupo social específico, sem vê-los de forma negativa.

Pessoas que se negam a abandonar alguns hábitos incompatíveis com nossa preocupação atual com os animais são pessoas que se negaram, mesmo que inconscientemente, a um determinado conceito de evolução. Esse conceito é evoluído, na minha opinião, por ter um embasamento racional. Mesmo sabendo que, ao soltar os fogos, você mantém viva uma cultura que poderia ter se perdido com os novos tempos e, por isso, ter o seu registro histórico apagado, ainda consigo ver soluções que serviriam para não fazer dessa manutenção um ataque aos animais.
Mas é no aspecto racional que reside o vínculo que faço entre meu questionamento sobre felicidade e a discussão a respeito dos fogos.

Ao defender que deveríamos repensar um comportamento habitual reproduzido por uma parcela da população, eu despertei o ódio de uma integrante dessa parcela da população. É aquela parcela que, mesmo se dadas todas as condições de informação, ela se nega a aprender. E se nega por um tipo de sentimento originado de questões bem mais primitivas do que os próprios fogos que ela defende. O conhecimento, como eu sempre falo, não pode ser ensinado a quem não se abre para ele. Como eu posso convencer, com argumentos e com racionalidade, alguém que debate com frases feitas que sugerem minha infelicidade como motivação para minha crítica aos fogos? Eu precisaria fazer todo um discurso introdutório sobre meu conceito de felicidade, que é incompatível com o daquela pessoa. Pior do que isso: eu conheço algumas das frustrações dessa pessoa. Eu sei que o seu modo de agir é combativo, exatamente em razão de ela se sentir infeliz e ver, em mim, um exemplo daquilo que lhe falta. E pior: eu não tenho isso que ela pensa que eu tenho e que lhe falta. No fundo, somos, nós dois, destituídos dessa característica. Logo, somos, nós dois, infelizes, mesmo que cada um inserido no seu conceito particular de felicidade. Como explicar, para alguém que debate nesse nível, que a felicidade, pra mim, é apenas um momento que se dá ocasionalmente em meio àquilo que nos é trivial?

 A felicidade, para mim, nem seria um estado digno de comemoração se ela fosse constante, visto que é o próprio caráter de exceção que gera o que chamamos de felicidade. Se a felicidade fosse constante, ela não seria um momento de bem-estar, mas um momento comum, sem valor positivo; seria um momento neutro; trivial. Mas como explicar isso para uma pessoa que não é nem capaz de manter uma postura educada e decente num debate? Como explicar a uma mente medíocre que a felicidade é algo muito mais complexo, incompatível com o sistema de pensamento que ela usa para decodificar a "realidade"?
Na verdade, vitórias e sucesso só acontecem depois de muitos fracassos e frustrações. Mesmo que seja possível que aconteçam também em momentos inesperados e, portanto, sem esforços, vitórias e sucesso são, normalmente, resultados de persistências pós-fracassos ou, no mínimo, resultados de muita luta.

Se eu tivesse levado à frente o debate iniciado por essa pessoa, eu só estaria dando, a ela, mais munição para que ela confirmasse o quanto eu sou, de fato, infeliz. O que ela não entenderia, no entanto, é que eu também a acho infeliz, pois, no sistema de pensamento dela, só a infelicidade é capaz de disparar a reação de fúria que ela teve ao se deparar com a insatisfação a respeito dos fogos. Na minha concepção de felicidade, é impossível que qualquer ser humano se classifique como "feliz". Para mim, a felicidade é um estado, ou seja, você só pode "estar feliz", mas nunca "ser feliz". Se eu tivesse levado à frente o debate, cairíamos em uma discussão em que, de forma extremamente infantil, dedicaríamos nosso tempo em uma competição vergonhosa a respeito de quem é mais feliz que o outro.

Na perspectiva comum, a felicidade não precisa ser propagandeada em textos acompanhados de fotos, em redes sociais, onde a felicidade do usuário se origina da desqualificação de outra pessoa, presente implicitamente como "inimiga" no texto da postagem.

Na minha perspectiva particular, a felicidade nem mesmo combina com a racionalidade. No momento em que saímos da "caverna" e percebemos que as sombras na parede eram apenas uma ilusão, sentenciamo-nos a uma vida menos feliz, embora, ao mesmo tempo, menos alarmante. Também nos damos conta que somos nossos maiores inimigos (um clichê, mas uma verdade) e que nossos momentos de felicidade serão resultados de vitórias particulares e não de derrotas alheias.

Quanto mais acesso temos ao conhecimento, mais percebemos nossa impotência diante do mundo. Inclusive nos tornamos incapazes de vencer debates com quem escolheu a ignorância, pois o desconhecimento sempre encontra um final feliz; uma zona de conforto. A ciência encontra fatos! E fatos são o que são, independente se confortáveis ou não. Muitos, assim como eu, acabam por aparentar como sendo pessoas mais "apáticas", vistas como vilões infelizes, mas que, no fundo, apenas enxergamos o mundo de uma maneira impopular, menos polarizada e menos competitiva. É, por exemplo, exatamente o meu pessimismo que me garante que eu "esteja feliz" com muito pouco. É a minha constatação particular de que a natureza é mais cruel do que "perfeita" que desperta minha preocupação com os animais.

Mas essas perspectivas são resultantes da racionalidade que mencionei. O conhecimento e o pensamento crítico não podem ser ensinados para quem os nega, mesmo se lhes é dada essa oportunidade. Mesmo as melhores escolas, acredito, são incapazes de desenvolverem um método infalível contra a ignorância voluntária. Não há método para quem fez a escolha pela ignorância. A escolha pela ignorância garante que você sempre terá uma frase pronta a seu favor, pois essa escolha preza por uma competição onde você já se declarou, antecipadamente, como o vencedor. Já na escolha pelo conhecimento científico, você apenas amplia sua insignificância diante do inevitável, percebendo que uma discussão, quando chega ao baixo nível de um ad hominem, nem merece ser discutida, pois você percebeu que tal discussão se pauta em valores com os quais você não comunga ou, melhor dizendo, em sistemas de pensamento incompatíveis.

O pior de ter prazer pelo conhecimento é perceber que isso implica, inevitavelmente, em constatarmos, mais cedo ou mais tarde, que o mínimo de alcance que conseguimos por meio de conhecimento é justamente não ter a certeza de nada.
A constatação pode ser ainda pior. Quando se vive em um contexto democrático, onde tal contexto envolve o fato de que a grande maioria da população não tem uma instrução adequada para lidar com visões de mundo minoritárias, percebemos que a tão aclamada "democracia" acaba funcionando como censora, visto que, embora garanta a liberdade de todos os tipos de expressões individuais, acaba por fazer valer, na prática, a vontade da maioria, que, por não ter acesso adequado à Educação, fortalece preconceitos, frases feitas e senso-comum como leis. Os julgamentos acabam prevalecendo como "verdades", ao serem confrontados com a racionalidade. No momento que o debate descamba para julgamentos de valores "vagos" (ou complexos demais) como "felicidade", onde o lado racional tende a jogar contra si mesmo - caso opte pela honestidade intelectual - e o lado ignorante tende, como sempre, a buscar a autoafirmação como argumento, já não existe nada que possa ser feito a não ser declararmos a ignorância como vencedora, como ela só pode ser num contexto democrático de maioria ignorante.